1 00:00:20,512 --> 00:00:22,110 Olá! 2 00:00:22,110 --> 00:00:26,125 O desenvolvimento das competências de leitura de uma língua 3 00:00:26,125 --> 00:00:28,072 está fortemente relacionado 4 00:00:28,079 --> 00:00:31,432 ao conhecimento da modalidade oral desta língua. 5 00:00:31,439 --> 00:00:33,210 Diversos estudos estabelecem 6 00:00:33,216 --> 00:00:35,823 claras relações de interdependência 7 00:00:35,828 --> 00:00:38,629 envolvendo leitura alfabética. 8 00:00:38,636 --> 00:00:41,062 Quando é processada pela criança ouvinte, 9 00:00:41,068 --> 00:00:45,087 a escrita alfabética evoca sua própria fala interna. 10 00:00:45,098 --> 00:00:49,010 Isso faz com que haja o resgate das imagens fonológicas 11 00:00:49,015 --> 00:00:52,021 de itens lexicais armazenados. 12 00:00:52,026 --> 00:00:56,059 A fala interna propicia as relações de consciência fonológica, 13 00:00:56,059 --> 00:00:57,913 memória de trabalho fonológica 14 00:00:57,916 --> 00:01:00,332 e memória fonológica de longo prazo. 15 00:01:00,338 --> 00:01:01,150 E, com isso, 16 00:01:01,153 --> 00:01:04,562 propicia o desenvolvimento crescente do vocabulário 17 00:01:04,561 --> 00:01:06,518 e do raciocínio verbal. 18 00:01:06,528 --> 00:01:10,072 Na criança ouvinte, esses itens de processamento interno 19 00:01:10,082 --> 00:01:13,816 estão baseados numa língua de modalidade oral auditiva. 20 00:01:13,825 --> 00:01:17,411 Porém, nas crianças surdas, esses processos internos 21 00:01:17,420 --> 00:01:22,443 não podem ser pareados com a escrita alfabética. 22 00:01:24,356 --> 00:01:28,187 As dificuldades na produção de textos escritos 23 00:01:28,201 --> 00:01:32,044 e os baixos níveis de leitura por parte das pessoas surdas 24 00:01:32,050 --> 00:01:34,855 podem ocorrer por diversas razões. 25 00:01:34,855 --> 00:01:37,019 Alguns autores apontam também 26 00:01:37,019 --> 00:01:39,138 o fato de que os níveis máximos 27 00:01:39,142 --> 00:01:42,088 de desenvolvimento de leitura e escrita de pessoas surdas 28 00:01:42,088 --> 00:01:44,959 são compatíveis aos níveis apresentados 29 00:01:44,962 --> 00:01:48,564 por pessoas ouvintes ao final do Ensino Fundamental. 30 00:01:48,570 --> 00:01:52,575 Esse tipo de comparação, entretanto, não é adequado, 31 00:01:52,575 --> 00:01:56,754 porque estamos comparando processamentos linguísticos diferentes. 32 00:01:56,754 --> 00:02:00,121 De um lado nós temos pessoas ouvintes, 33 00:02:00,121 --> 00:02:02,325 que tem o português como primeira língua 34 00:02:02,325 --> 00:02:07,284 sendo avaliados em suas habilidades de leitura e escrita do português. 35 00:02:07,284 --> 00:02:11,113 No outro lado, no entanto, temos as pessoas surdas, 36 00:02:11,113 --> 00:02:15,103 que tem o português como segunda língua e estão sendo avaliados 37 00:02:15,122 --> 00:02:19,096 em suas habilidades de leitura e escrita dessa segunda língua. 38 00:02:19,096 --> 00:02:20,899 Neste último caso, 39 00:02:20,899 --> 00:02:24,378 a análise deve ser feita levando em consideração que 40 00:02:24,384 --> 00:02:28,612 a língua que gera o processamento cognitivo da pessoa surda 41 00:02:28,612 --> 00:02:30,612 é a Língua Brasileira de Sinais. 42 00:02:30,613 --> 00:02:35,001 E a habilidade objeto é a leitura e escrita de outra língua 43 00:02:35,011 --> 00:02:37,667 que é o português. 44 00:02:38,210 --> 00:02:43,282 Como eu já disse, não vai existir correspondência entre, por exemplo, 45 00:02:43,282 --> 00:02:46,723 o processamento linguístico fonológico do indivíduo 46 00:02:46,723 --> 00:02:50,246 e o processamento do código alfabético do português. 47 00:02:50,246 --> 00:02:53,022 E, por esse motivo, as vias de acesso 48 00:02:53,022 --> 00:02:55,925 para essa habilidade vão ser diferentes. 49 00:02:55,925 --> 00:02:59,915 Trata-se do processamento de uma língua natural, a LIBRAS. 50 00:02:59,915 --> 00:03:04,826 E levando isso em consideração, as habilidades cognitivas e linguísticas 51 00:03:04,826 --> 00:03:09,308 se encontram distribuídas na população surda da mesma forma 52 00:03:09,308 --> 00:03:12,097 que se encontram na população ouvinte. 53 00:03:12,097 --> 00:03:16,719 Por isso a comunidade surda é concebida como uma população normal, 54 00:03:16,719 --> 00:03:21,499 em que as características relevantes ao processo de ensino e aprendizagem 55 00:03:21,499 --> 00:03:25,177 se encontram normalmente distribuídas. 56 00:03:25,560 --> 00:03:30,828 Para a maior parte das crianças ouvintes a leitura do código alfabético, 57 00:03:30,828 --> 00:03:35,171 parece natural e intuitiva, já que elas possuem aquela língua 58 00:03:35,172 --> 00:03:39,373 como primeira língua e os mecanismos de fala interna necessários 59 00:03:39,379 --> 00:03:42,216 ao bom desenvolvimento dessa habilidade, 60 00:03:42,225 --> 00:03:46,481 é um processo contínuo para a criança ouvinte. 61 00:03:47,312 --> 00:03:50,918 Para a criança surda, a leitura é um desafio 62 00:03:50,918 --> 00:03:54,705 porque pode ter características artificiais e arbitrárias, 63 00:03:54,705 --> 00:03:59,320 constantemente influenciadas pela descontinuidade e disparidade 64 00:03:59,321 --> 00:04:01,494 de processamentos linguísticos. 65 00:04:01,494 --> 00:04:05,209 A escrita alfabética não mapeia a organização dos sinais, 66 00:04:05,209 --> 00:04:07,858 como acontece na mente da pessoa surda. 67 00:04:07,858 --> 00:04:10,222 e não recupera o sinal diretamente. 68 00:04:10,222 --> 00:04:12,906 Por exemplo, na sentença do português: 69 00:04:12,906 --> 00:04:14,906 "O cachorro mordeu o gato", 70 00:04:14,906 --> 00:04:20,268 essa organização linear escrita, além da representação grafema fonema, 71 00:04:20,271 --> 00:04:25,732 não busca na mente da pessoa surda a forma que produz a ideia de que 72 00:04:25,732 --> 00:04:27,886 um cachorro mordeu o gato. 73 00:04:27,886 --> 00:04:31,322 A pessoa surda processa essa frase da seguinte forma... 74 00:04:35,679 --> 00:04:39,755 Ela estabelece num espaço o cachorro. 75 00:04:39,755 --> 00:04:43,450 Em outro espaço o gato. E executa o sinal de morder 76 00:04:43,450 --> 00:04:46,002 de uma forma direcional. 77 00:04:46,002 --> 00:04:50,409 Essa simetria nas relações de continuidade e disparidade 78 00:04:50,409 --> 00:04:53,248 entre os códigos faz toda a diferença. 79 00:04:53,248 --> 00:04:55,913 na sustentação natural do processo. 80 00:04:55,913 --> 00:05:00,274 As palavras são os itens lexicais naturais com que a criança ouvinte 81 00:05:00,274 --> 00:05:06,155 pensa e se comunica, assim como os sinais são os itens lexicais naturais 82 00:05:06,157 --> 00:05:08,889 com que a criança surda pensa e se comunica. 83 00:05:08,889 --> 00:05:13,433 Para a criança ouvinte, a decodificação da escrita alfabética reproduz 84 00:05:13,433 --> 00:05:17,875 automaticamente as imagens fonológicas das mesmas palavras 85 00:05:17,875 --> 00:05:21,295 que ela pensa e se comunica no dia-a-dia. 86 00:05:21,295 --> 00:05:26,315 Porém, no caso da criança surda, a decodificação dessa mesma escrita 87 00:05:26,315 --> 00:05:30,086 é incapaz de reproduzir direta ou automaticamente 88 00:05:30,086 --> 00:05:32,740 a imagem dos sinais da Língua de Sinais 89 00:05:32,743 --> 00:05:36,043 com que ela pensa e se comunica no seu dia-a-dia. 90 00:05:36,043 --> 00:05:39,893 É por esse motivo que a escrita alfabética se torna artificial, 91 00:05:39,893 --> 00:05:42,764 impessoal e arbitrária para a criança surda. 92 00:05:42,764 --> 00:05:46,717 E que torna o processo de aprendizagem de leitura e escrita tão penoso 93 00:05:46,717 --> 00:05:49,803 e frustrante para elas. 94 00:05:51,313 --> 00:05:57,849 Uma das causas apontadas são as inadequações do sistema educacional. 95 00:05:57,853 --> 00:06:01,130 O ensino de leitura e escrita para surdos 96 00:06:01,130 --> 00:06:03,981 tem ocorrido através de diversos métodos. 97 00:06:03,981 --> 00:06:07,581 Até meados da década de 80, mesmo com evidências 98 00:06:07,581 --> 00:06:10,589 sobre a dificuldade de leitura apresentada pelos surdos, 99 00:06:10,589 --> 00:06:13,954 ainda não havia consenso sobre qual seria a melhor forma 100 00:06:13,957 --> 00:06:17,155 de desenvolver leitura e escrita para surdos. 101 00:06:17,155 --> 00:06:20,459 O domínio da oralidade parece ser um ponto positivo 102 00:06:20,461 --> 00:06:23,714 para o desenvolvimento de melhores habilidades de leitura e escrita. 103 00:06:23,714 --> 00:06:26,885 Por esse motivo, métodos híbridos 104 00:06:26,885 --> 00:06:29,411 com o uso de Língua de Sinais e oralidade, 105 00:06:29,412 --> 00:06:32,425 ou sinalização baseada na oralidade, 106 00:06:32,425 --> 00:06:36,847 como o português sinalizado ou bimodalismo, já foram usados. 107 00:06:36,847 --> 00:06:40,682 Entretanto, a sobreposição de duas línguas não é possível. 108 00:06:40,682 --> 00:06:45,115 E nem a oralidade e nem a língua de sinais acabam por ser utilizadas 109 00:06:45,115 --> 00:06:47,115 de forma adequada. 110 00:06:47,115 --> 00:06:50,738 Muitos profissionais que começaram a trabalhar no ensino de português 111 00:06:50,740 --> 00:06:53,624 para surdos dentro de propostas híbridas, 112 00:06:53,624 --> 00:06:56,307 passaram a reconhecer no bilinguismo 113 00:06:56,307 --> 00:07:00,608 a forma efetiva para o ensino de leitura e escrita para surdos. 114 00:07:00,608 --> 00:07:04,251 No contexto bilingue, o aprendizado de leitura e escrita 115 00:07:04,251 --> 00:07:07,748 pelas crianças surdas é baseada em princípios semelhantes 116 00:07:07,748 --> 00:07:10,217 aos do ensino de línguas estrangeiras. 117 00:07:10,217 --> 00:07:14,485 privilegiando as relações de sentido e obedecendo as diferenças 118 00:07:14,485 --> 00:07:16,143 de valores entre as duas línguas. 119 00:07:16,741 --> 00:07:21,035 Privilegia-se então o processamento da informação 120 00:07:21,035 --> 00:07:25,339 e a presença de instruções explícitas com programação 121 00:07:25,339 --> 00:07:28,287 e administração bem sistematizadas. 122 00:07:28,287 --> 00:07:32,621 O reconhecimento da importância dessa sistematização é recente. 123 00:07:32,621 --> 00:07:36,337 No Brasil a discussão iniciou-se na década de 80. 124 00:07:36,337 --> 00:07:39,304 e sua aplicação no final dos anos 90. 125 00:07:39,304 --> 00:07:42,688 Do ponto de vista legal, o bilinguismo ganha espaço 126 00:07:42,688 --> 00:07:45,222 apenas na década seguinte. 127 00:07:45,222 --> 00:07:49,642 A Língua de Sinais fundamenta as bases neurocognitivas 128 00:07:49,642 --> 00:07:53,116 para o aprendizado da leitura e escrita para surdos. 129 00:07:53,116 --> 00:07:57,654 No entanto, a importância da LIBRAS não reside apenas aí. 130 00:07:57,654 --> 00:08:00,925 A Língua de Sinais quando estimulada adequadamente 131 00:08:00,925 --> 00:08:05,569 permite não apenas a adequação de processamentos linguísticos internos, 132 00:08:05,569 --> 00:08:08,355 mas permite comunicação efetiva. 133 00:08:08,357 --> 00:08:11,384 E com a comunicação efetiva, há a possibilidade 134 00:08:11,384 --> 00:08:15,034 de troca de experiências, acesso à informação, 135 00:08:15,034 --> 00:08:16,646 conhecimento de mundo... 136 00:08:16,648 --> 00:08:20,923 Que também são itens imprescindíveis no processo de aprendizado 137 00:08:20,923 --> 00:08:23,954 da modalidade escrita de uma língua. 138 00:08:23,954 --> 00:08:29,005 Aqui, nós enfatizamos questões relacionadas ao processamento 139 00:08:29,005 --> 00:08:30,531 intrapessoal. 140 00:08:30,535 --> 00:08:34,033 Mas, assim como a Língua de Sinais, a modalidade escrita de uma língua 141 00:08:34,036 --> 00:08:38,511 é uma ferramenta que deve ser adquirida para o desenvolvimento pessoal do surdo 142 00:08:38,517 --> 00:08:43,997 e também para o desenvolvimento de suas relações e atuação na sociedade. 143 00:08:43,997 --> 00:08:47,170 Até a próxima aula!